quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O fantasma do Convento da Saudação


Legenda: Fotos do Convento da Saudação (O Espaço do Tempo, centro coreográfico de Rui Horta, em Montemor-o-Novo) durante o projecto Colina - Colaboration In Arts, de 2003

Primeira aproximação à história de Samuel B (uma história complicada... que não mais termina...)
Publicado na revista Magazine Arts em... 2003?

Percorri os recantos do Convento da Saudação, em Montemor-o-Novo, à procura de Samuel B.
Recordava um breve encontro do passado, e a sua imagem perseguia-me como uma sombra que queria reencontrar corporizada. Dessa troca fugaz de olhares e palavras ficaram-me marcadas as impressões de um sorriso
misterioso,
ambíguo,
sorriso precedido de artigo indefinido e acompanhado por uma absurda aparência de olhar triste.
Um sorriso de olhar perdido no mundo.
Era como se Samuel B. não tivesse alma.
Era como se Samuel B. não compreendesse quem era.
E nessa não compreensão, era como se Samuel B. se lançasse num abismo de sentidos, no colapso de uma existência especial, extraordinária, fazendo da sua maior fraqueza – essa angústia de quem sente ou pressente que não é enquanto ser constituído de uma essência – a sua maior força. Samuel B. fez de um constante desdobramento de personalidade, de uma desmultiplicação de comportamentos psicóticos, uma capacidade de frequente renovação da sua identidade e uma extraordinária adaptação à circunstância particular que tinha, a cada novo instante, de enfrentar.
O que ele era, Samuel B. não sabia.
E por isso era muitas pessoas diferentes que a cada novo momento descobria, maravilhado, dentro de si.
E por isso, para nesse processo de constante metamorfose se poder encontrar, conseguia sempre antecipar a expectativa criada nas pessoas que consigo se cruzavam, superando a surpresa aguardada, surgindo com uma acção que o tornava irremediavelmente inesquecível. Samuel B. experimentava no seu não ser íntimo as delícias de quem, com furiosa ânsia, adaptava o seu temperamento ao que entendia como sendo desejado por determinada pessoa ou determinado grupo de pessoas, aplicando uma peculiar sensibilidade neste processo de análise psicológica e sociológica da expectativa criada no outro e nunca, mas nunca, o decepcionando. Assim, este louco que queria ser alguém e sentia que Não Era e que queria ter o dom de compreender quem era, caso se viesse a constituir enquanto Alguém, ainda situando-se nesta fase de sonho, por ser antecipatória desse instante de concretização do ser completo, desejava ardentemente iluminar-se de uma sabedoria interior que lhe permitisse compreender quem era esse ser que um dia poderia vir, finalmente, a constituir-se enquanto Ser.
Era tendo todas estas desmedidas ambições que Samuel B. andava pelo mundo a deixar marcada, como uma tatuagem, a sua imagem no ser dos outros.
Por enquanto era apenas uma sombra,
e, sendo apenas uma sombra, era muito mais do que apenas uma sombra, porque se constituía enquanto corpo físico, cuja presença era desejada, mesmo antes de sentida.
E mesmo enquanto apenas sombra, sendo mais do que mera sombra, era uma silhueta confusa que se instalava docemente sobre a nossa pele,
que nos percorria o corpo de um arrepio inesperado à noite, como se alguém invisível suspirasse baixinho ao nosso ouvido, por baixo dos lençóis, em noites de lua cheia. E nesse instante de aragem sensual, de hálito quente e adocicado, éramos tocados como se o ar fosse todo corpo em harmonia com o nosso próprio corpo. Samuel B. destruía todas as apatias do universo com um poder omnipresente que rivalizava com Deus nos céus.
Que criatura é esta que pisa o mundo e que todos desejam e ninguém compreende?
Samuel B. é um nome que ainda hoje quero conhecer mas que se me escapa, por entre os dedos, por entre uma distracção do olhar, por entre uma desatenção.
Samuel B. é uma obsessão.
Samuel B. passeou-se pelos corredores do Convento da Saudação, em Montemor-o-Novo, durante quinze dias, como uma fantasmagoria que assombra a existência de quem realmente existe e respira e suspira.
Samuel B. é o espaço da invenção, o espaço da maravilhosa possibilidade de construção criativa que apenas a imaginação humana consegue operar, e que se torna simbólico da realidade, ela mesma estonteantemente criativa, que se instalou, naquele Convento, num projecto de residência artística. E no espaço escrito, neste lugar de construção narrativa, onde antes existia apenas a folha em branco, cruzam-se os mundos da verdade e da mentira, sendo a mentira uma reacção intuitiva à realidade que a inspirou. Chamou-se Colina. Essa experiência inspiradora. Significa Collaboration In Arts. E as pessoas com nomes de pessoas que são personagens com nomes de pessoas verdadeiras cruzaram-se naqueles claustros de ideias em execução e questionamento e problematização. E colocaram ao serviço de terceiros os corpos verdadeiros de pessoas verdadeiras que são pessoas com uma construção social, com uma configuração artística. Construiu-se assim, por quinze dias, uma comunidade transitória de pessoas que se dispõem a jogar ao faz-de-conta, que se dispõem a ser manipuladas como matéria-prima para moldar ideias alheias. E por ali encontraram-se os rostos do fingimento do teatro e os corpos da sugestão da dança e os nomes de pessoas com nomes de pessoas que são autores e que são intérpretes e que são nomes com muitos significados e que transportam atrás de si mundos de construção imagética, inevitavelmente a eles associados. E a primeira ideia foi de Rui Horta. E surgem depois todos os nomes. Recordo o nome de Clara Andermatt, e recordo o nome delicado e disponível para a colaboração de André Gingras, Anton Skrzypiciel, Luciano Amarelo ou Nicolas Cantillon, e recordo o nome de João Garcia Miguel, que é uma personagem por entre as personagens que ele próprio tem inventado, sendo ele próprio possivelmente a maior e mais complexa e caricatural e deliciosa personagem que alguma vez consolidou enquanto encenador invulgar de sentidos invulgares do seu potencialmente invulgar espaço teatral. E evocam-se outros nomes, que vêm atrás destes primeiros e possivelmente (noção discutível se aproxima) mais reais nomes. E surge Andy Warhol, que evoca um mundo de arte como mercado e toda uma estratégia e postura de construção de personagens e de identidades que em si mesmo dilui a separação entre o mundo da arte e o mundo do real. Ou cria entre os dois um abismo maior? E chama-se por Marcel Duchamp num palco habitado por uma provocação de Stephanie Thiersch. Duchamp que não responde, mas cuja referência transporta todo um mundo simbólico que é difícil ignorar. E tudo por ali deixa um rasto de memória marcado nas paredes do Convento (ou, por extensão, no Teatro Curvo Semedo), que por si mesmo carrega já a poética ruína dos tempos antigos (e surgem outros nomes, o universo de delícia da «Casa de Bonecas» de Susana Jaques ou a magia da imagem de Hélder Dias). E neste ritual de passagem, de todas as pessoas insignificantes que somos todos nós, meros 'passers by', evoca-se Rebecca Schneider, ao referir a qualidade de passeantes, seres fugazes que a memória do tempo tratará de eliminar (mais uma noção discutível) por não figurarem nos murais das ilustres figuras fixadas para a posteridade. 'Passers by' em vertigem por entre os intestinos do monumento, construindo no seu âmago o paradoxo do sangue vertiginoso presente, performativo, pulsante, em confronto com o enigma da corrosão decadente dos séculos que passaram e que ditaram a imponência para a posteridade da sociedade do arquivo que nos esmaga nas suas configurações dos absolutamente válidos para a existência eterna. Quem impõe as regras? Quem dita os padrões?
O que é um conto?
Uma frase roubada a alguém cujo nome não guardei.
Desejo ardentemente que assim seja.
Samuel B.
Regresso ao sorriso imaginado que imagino a desenhar-se na face de Samuel B. quando cruza o seu olhar com o meu.
E nesse instante em que os olhos se tocam, sinto-lhe o corpo na proximidade do calor do meu.
Samuel B. foge, mais uma vez. É rápido a baixar o olhar, a fechar a porta para o seu mundo interior. Talvez com receio de que o descubra vazio.
E por entre as paredes grossas do Convento da Saudação corre veloz a sombra de Samuel B., de mãos nos bolsos, a chupar uma pedra e a deixar ouvir o chocalhar das muitas pedras que foi guardando nos bolsos que agora acolhem as suas mãos. E vêm tantas outras referências, apenas com mais esta referência às pedras chupadas, mas cuja partilha do dito no silêncio do que não é explicitamente afirmado remete-nos para uma outra experiência, que carrega consigo mais uma série de outras referências.
Os segredos.
Quem tem acesso aos segredos?
Quem nos escolhe para partilhar um segredo?
Com Samuel B. partilho todos os segredos do meu mundo e ele, em troca, oferece-me a ilusão de que eu tenho acesso a todos os segredos do seu mundo. E mais uma vez é um jogo de verdade e de mentira. E regresso aos corpos, o corpo fugidio e fantasmático de Samuel B., e todos os outros que deixaram vestígios nos corredores daquele Convento, como o de Luís Guerra, como um corpo em profunda fase de descoberta, de si próprio e das possibilidades criadoras do ser humano, e todos os outros corpos – e regresso aos segredos – que se dispõem a exercícios mais sussurrados, segredados ao ouvido por Teresa Prima, como um suspiro, que se solta numa cumplicidade que decorre em palco mas que salta depois para o exercício de testemunha desse momento de partilha. E esboço um sorriso na delícia da empatia estabelecida simplesmente, ali, por um afecto descoberto no acto criativo, entre Luís Guerra, Félix Lozano e Joclécio Azevedo. E novamente remeto para a memória de Rebecca Schneider e evocam-se as estátuas vivas construídas há poucas semanas nos jardins da Gulbenkian a partir de um segredo partilhado ao ouvido por um amigo recém-descoberto nos meandros das artes. E ouve-se uma voz doce que canta uma melodia nostálgica que nos embala para um mundo de sonho, onde é possível fechar os olhos e deixarmo-nos ir. Eric Linder.
E recordo a Eva do sorriso das noites brancas atrás dos sentidos das palavras que procuram outras palavras irmãs numa língua diferente, para nos aproximar a todos em cada novo dia de louca procura de novos sentidos para as palavras brancas que, com sorrisos, queremos colorir.
Tudo isto é um segredo, que partilho com quem me lê, que desejo partilhar com Samuel B.
Samuel B. que desejo.
Tudo isto é um segredo como são segredos todas as pequenas histórias, todos os pequenos contos, que escrevemos num papel e que apenas um grupo restrito de pessoas compreende em todo o seu significado. Mas basta escolher uma frase e adormecer com ela. Basta escolher uma imagem e aninharmo-nos nela. Basta escolher uma palavra, uma palavra é quanto basta, para nos enroscarmos num conforto de possibilidades e nos sentirmos confortáveis com os sentidos relativos e subjectivos de todas as outras palavras que inicialmente não compreendíamos. Porque não tínhamos acesso a todos os segredos.
E depois poderia falar de amores. Para que o conto se pudesse tornar mais universal.
E devo então falar dos corpos que se apaixonam e se precipitam no abismo do sofrimento da paixão intensa que seduz a morte e deixar correr algumas palavras de «O Erotismo» de Georges Bataille. E pensar no corpo de Samuel B., pensar em todos os outros seres que com ele se cruzaram e que por ele se deixaram seduzir, num encantamento impossível de superar, num encantamento que choca com a dor, o terror de não ser totalmente correspondido. O desejo de morte. O desejo de matar. E devo escrever ainda que este mundo de comunhão, que é habitado pelo sofrimento e pela angústia do profundo desencontro e da mais dura desatenção, é também o espaço da exaltação que a todos interessa. E Bataille pode ajudar.
«As possibilidades de sofrer são tanto mais vastas quanto só o sofrimento revela inteiramente o significado do ser amado.»
E nos momentos de exaltação, nos opostos, da profunda e delicada tristeza, que deixa o corpo vulnerável, à beira do abismo, em pose de definhamento, ou no seu oposto, no sorriso esboçado por um prazer inominável, para o qual a arte cumpre um determinante papel, evoco novamente essa figura fantasmática que me persegue há imenso tempo e evoco esse espaço de contaminação em que não é possível identificar a fronteira entre o mundo da verdade e o mundo da mentira. E todos os nomes.
Convoco todos os nomes.
Maria Herranz, Vítor Joaquim, Célia Costa, Luís Bombico, Celine Bacque…
Nomes evocados em vão neste texto fúnebre, de homenagem à doce memória de um passado recente, mas também de elogio fúnebre do artista maior que foi aquele que se soube construir a si próprio enquanto ser e que terminou a sua existência num acto abjeccionista e degradante de se satisfazer sexual ou assassinamente, por se encontrar num estado tal de perfeição que não concebia a possibilidade de se deixar tocar por outro que não ele próprio, por considerar que ninguém estava ao seu nível. Ou um homem louco, mais louco ainda que Samuel B., que depois de cometida a sua maior loucura, e aqui imaginem o que quiserem, decide escrever uma extraordinária defesa filosófica sobre a sua insana acção. E deste homem louco o que fica é esse deslumbre canibalista, que habita em todos nós, que passa a interessar-se por esta criatura e pelos seus feitos aberrantes, elevando-a à categoria de ser ilustre e interessante, cujas razões mais íntimas de tal comportamento desajustado e reprovável desejamos conhecer para compreender. E perdoar? Por quem sentimos uma tentadora atracção. E regresso a todos os outros nomes que evoco. Nomes que simbolizam esse espaço de limbo em que as pessoas são verdadeiramente alguém sem que ninguém saiba verdadeiramente quem são mas sem que, por intrusão dos afectos no raciocínio e julgamento das circunstâncias, ninguém se preocupa realmente com essa possibilidade de o jogo do faz-de-conta estar a ser jogado nas horas do dia-a-dia, fora do palco. Um espaço de limbo que continua a existir mesmo nos momentos em que o palco nos é colocado perante o olhar, e este (o palco) surja então como um possível contraponto para nos fazer procurar esses opostos – o espaço da verdade e o da mentira. Perante tamanha evidência, concluímos que não os encontramos (os opostos), descobrindo apenas uma deliciosa, por muito que muitas vezes perversa, continuidade dessa atmosfera de máscara socialmente aceitável, fora das fronteiras que definem o lugar do reino da mentira. E quando jogado com a intimidade, as fronteiras tornam-se não-lugares, zonas confusas, descaracterizadas, vulneráveis, onde não se sabe quem somos na verdade.
Desejo ardentemente que assim seja.
E Samuel B. é uma possibilidade de conflito com uma não existência ainda em fase de clarificação.
Começo a conhecer Samuel B., mas ele ainda não me abriu as portas para a sua verdadeira intimidade.
E tudo isto porque há a assinalar a persistência de uma sombra, a de Samuel B., que foi percorrendo os caminhos, os recantos, os claustros… do Convento da Saudação, enquanto estive duas semanas neste mesmo Convento a assistir a uma maratona de criatividade artística.
Onde começa a ficção e termina a verdade?
A questão remete novamente para esse não-lugar.
Desejo ardentemente...
Para aquele instante em que as pessoas que lá estavam, e que eram pessoas cujos nomes significavam muitos significados relativamente a quem eram essas pessoas em termos sociais neste mundo do espectáculo e neste mundo de verdade dissimulada dos afectos e das verdades de cada um, nos deixavam perante o dilema de perceber onde começa o nome que é propriedade de uma vivência íntima e onde acaba o nome que é resultado de uma construção criativa. E basta pedir algo tão delicado como uma disponibilidade para o choro. E perante o choro, perante aquele choro que nos é alheio mas, por ser de tal modo sentido e de tal modo fragilizante para a pessoa que a ele se entrega, nos faz confrontar com as nossas próprias vulnerabilidades. E poderia evocar, a propósito desta frase, mais nomes. Delfim Sardo, Catarina Campino. E talvez tudo isto seja mais um segredo. E sublinhar a delícia desse momento raro em que a arte nos faz confrontar com os nossos próprios fantasmas… Segredos.
Desejo ardentemente que assim seja.
Poderia novamente recordar que esta história respira a mesma essência que nos constitui a todos como seres humanos, há muito de construção artificial, de mentira, de ficção, nesta narrativa, o que constitui zonas não totalmente identificadas, e há um fundo de verdade, mas não é preciso tudo conhecer, ter acesso a todos os segredos, para se deixar envolver pela capacidade de delícia resultante de um acto de partilha da imaginação. E repito-me. Basta uma palavra… e é possível experimentar esse privilégio da subjectividade, que constrói uma história pessoal a partir dos fragmentos de palavras lançados de forma desordenada nestas folhas de papel.
E regresso aos claustros do Convento da Saudação. Recordo o rosto de Samuel B. Recordo as palavras de Bataille. Recordo o apelo à paixão, e a morte a espreitar. Recordo o erotismo do corpo. Esse sentido real, que apela aos sentidos. E recordo Samuel B. a esquivar-se.
Samuel B. esquiva-se com um sorriso e sai ligeiro deixando-nos suspensos nesse sorriso.
Samuel B.
Um nome que ressoa na minha mente como uma gravação sem possibilidade de ser apagada.
Samuel B. como uma sombra, uma imagem que me persegue os passos sem privilegiar do prazer da sua presença.
Samuel B. uma obsessão.


O conto.
Desejo ardentemente que assim seja.
O conto?
Desejo…
Havia normalmente um acordar matinal preguiçoso e arrastado. Do corpo quente que, durante a noite, se funde com a maciês dos lençóis e receia quebrar esse elo umbilical com um conforto infantil, receia perder a ternura de uma impressão inocente de segurança, e lançar-se sem temor nos braços do mundo selvagem. Numa dessas manhãs lentas de Julho, lembro-me de acordar com um sorriso. É peculiar esta lembrança de abrir os olhos para descobrir, numa descoberta intuitiva e interior, no meu próprio rosto, um esboço de felicidade. Esta foi uma revelação activada não pelo olhar cruzado com o meu próprio olhar e rosto no espelho, mas antes por um processo mental inexplicável em que, sem que eu tenha conscientemente me focado nesse acto do pensamento, dispara um registo fotográfico da minha própria expressão facial idealizada. E nesse instante de auto-contemplação mental, lá estava ele, o sorriso, a dizer-me baixinho que aquele seria um dia diferente. Era o primeiro dia de uma vertigem criativa no Convento da Saudação. Era o dia das primeiras impressões, do primeiro olhar, dos primeiros equívocos, das primeiras precipitações, das primeiras especulações, das primeiras curiosidades que resultavam numa primeira rede de aproximações e cumplicidades, numa coreografia muito estruturada e geométrica mas intuitiva e emocional de relações empáticas ao primeiro olhar. E entre aqueles mais de vinte artistas, lá estava Samuel B., a sombra de Samuel B., que me persegue os passos nos últimos meses e que me seguira até ali, para me ir sussurrando, ao ouvido, indiscrições, confissões de temores e de cobardias. Só eu via a silhueta de Samuel B. naquela sala, sempre sentado a meu lado. A insólita, impossível, sedutora personagem que era Samuel B., entretido nas suas anotações para um dos seus mil projectos, sendo este uma tese que misturava elaborações teóricas de grande complexidade discursiva e uma mais superficial análise dos comportamentos humanos, numa lógica quase bigbrotheriana mas vista a partir da convivência diária, praticamente 24 horas por dia, de um grupo considerável de representantes de uma comunidade artística diversa, de portugueses e estrangeiros, das mais diversas linguagens, no período de duas semanas, com o ambicioso propósito de instalar uma dinâmica criativa e experimental que, mesmo não resultando em produtos acabados, denuncia descobertas de novas possibilidades, de abordagem da criação contemporânea, tendo em vista as mais-valias da contaminação e do acesso às novas tecnologias. E Samuel B. por ali estava, entre os outros tão diferentes dele e no entanto confundindo-se com estes como um camaleão. Era um satélite que circulava por todo o lado, com o corpo solto numa impressionante descontracção com a sua existência física, como se esta fosse um mero instrumento de sentidos em harmonia que se destacava precisamente pelo ar descontraído que ele punha em toda a sua postura. Tinha uns olhos água, onde apetecia mergulhar, uns lábios de riso fácil e tristeza rápida, e punha na voz uma melodia e doçura tais que se colava à pele de quem o ouvia, tornando-nos irremediáveis presas do seu capricho e sedução.
Desejo ardentemente que assim seja.
Claudia Galhós

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